terça-feira, 15 de novembro de 2011

A dura vida dos ateus em um Brasil cada vez mais evangélico

O diálogo aconteceu entre uma jornalista e um taxista na última sexta-feira. Ela entrou no táxi do ponto do Shopping Villa Lobos, em São Paulo, por volta das 19h30. Como estava escuro demais para ler o jornal, como ela sempre faz, puxou conversa com o motorista de táxi, como ela nunca faz. Falaram do trânsito (inevitável em São Paulo) que, naquela sexta-feira chuvosa e às vésperas de um feriadão, contra todos os prognósticos, estava bom. Depois, outro taxista emparelhou o carro na Pedroso de Moraes para pedir um “Bom Ar” emprestado ao colega, porque tinha carregado um passageiro “com cheiro de jaula”. Continuaram, e ela comentou que trabalharia no feriado. Ele perguntou o que ela fazia. “Sou jornalista”, ela disse. E ele: “Eu quero muito melhorar o meu português. Estudei, mas escrevo tudo errado”. Ele era jovem, menos de 30 anos. “O melhor jeito de melhorar o português é lendo”, ela sugeriu. “Eu estou lendo mais agora, já li quatro livros neste ano. Para quem não lia nada...”, ele contou. “O importante é ler o que você gosta”, ela estimulou. “O que eu quero agora é ler a Bíblia”. Foi neste ponto que o diálogo conquistou o direito a seguir com travessões.

- Você é evangélico? – ela perguntou.
- Sou! – ele respondeu, animado.
- De que igreja?
- Tenho ido na Novidade de Vida. Mas já fui na Bola de Neve.
- Da Novidade de Vida eu nunca tinha ouvido falar, mas já li matérias sobre a Bola de Neve. É bacana a Novidade de Vida?
- Tou gostando muito. A Bola de Neve também é bem legal. De vez em quando eu vou lá.
- Legal.
- De que religião você é?

- Eu não tenho religião. Sou ateia.

- Deus me livre! Vai lá na Bola de Neve.
- Não, eu não sou religiosa. Sou ateia.
- Deus me livre!
- Engraçado isso. Eu respeito a sua escolha, mas você não respeita a minha.
- (riso nervoso).
- Eu sou uma pessoa decente, honesta, trato as pessoas com respeito, trabalho duro e tento fazer a minha parte para o mundo ser um lugar melhor. Por que eu seria pior por não ter uma fé?
- Por que as boas ações não salvam.
- Não?
- Só Jesus salva. Se você não aceitar Jesus, não será salva.
- Mas eu não quero ser salva.
- Deus me livre!
- Eu não acredito em salvação. Acredito em viver cada dia da melhor forma possível.
- Acho que você é espírita.
- Não, já disse a você. Sou ateia.
- É que Jesus não te pegou ainda. Mas ele vai pegar.
- Olha, sinceramente, acho difícil que Jesus vá me pegar. Mas sabe o que eu acho curioso? Que eu não queira tirar a sua fé, mas você queira tirar a minha não fé. Eu não acho que você seja pior do que eu por ser evangélico, mas você parece achar que é melhor do que eu porque é evangélico. Não era Jesus que pregava a tolerância?
- É, talvez seja melhor a gente mudar de assunto...
O taxista estava confuso. A passageira era ateia, mas parecia do bem. Era tranquila, doce e divertida. Mas ele fora doutrinado para acreditar que um ateu é uma espécie de Satanás. Como resolver esse impasse? (Talvez ele tenha lembrado, naquele momento, que o pastor avisara que o diabo assumia formas muito sedutoras para roubar a alma dos crentes. Mas, como não dá para ler pensamentos, só é possível afirmar que o taxista parecia viver um embate interno: ele não conseguia se convencer de que a mulher que agora falava sobre o cartão do banco que tinha perdido era a personificação do mal.)
Chegaram ao destino depois de mais algumas conversas corriqueiras. Ao se despedir, ela agradeceu a corrida e desejou a ele um bom fim de semana e uma boa noite. Ele retribuiu. E então, não conseguiu conter-se:
- Veja se aparece lá na igreja! – gritou, quando ela abria a porta.
- Veja se vira ateu! – ela retribuiu, bem humorada, antes de fechá-la.
Ainda deu tempo de ouvir uma risada nervosa.

A parábola do taxista me faz pensar em como a vida dos ateus poderá ser dura num Brasil cada vez mais evangélico – ou cada vez mais neopentecostal, já que é esta a característica das igrejas evangélicas que mais crescem. O catolicismo – no mundo contemporâneo, bem sublinhado – mantém uma relação de tolerância com o ateísmo. Por várias razões. Entre elas, a de que é possível ser católico – e não praticante. O fato de você não frequentar a igreja nem pagar o dízimo não chama maior atenção no Brasil católico nem condena ninguém ao inferno. Outra razão importante é que o catolicismo está disseminado na cultura, entrelaçado a uma forma de ver o mundo que influencia inclusive os ateus. Ser ateu num país de maioria católica nunca ameaçou a convivência entre os vizinhos. Ou entre taxistas e passageiros.
Já com os evangélicos neopentecostais, caso das inúmeras igrejas que se multiplicam com nomes cada vez mais imaginativos pelas esquinas das grandes e das pequenas cidades, pelos sertões e pela floresta amazônica, o caso é diferente. E não faço aqui nenhum juízo de valor sobre a fé católica ou a dos neopentecostais. Cada um tem o direito de professar a fé que quiser – assim como a sua não fé. Meu interesse é tentar compreender como essa porção cada vez mais numerosa do país está mudando o modo de ver o mundo e o modo de se relacionar com a cultura. Está mudando a forma de ser brasileiro.
Por que os ateus são uma ameaça às novas denominações evangélicas? Porque as neopentecostais – e não falo aqui nenhuma novidade – são constituídas no modo capitalista. Regidas, portanto, pelas leis de mercado. Por isso, nessas novas igrejas, não há como ser um evangélico não praticante. É possível, como o taxista exemplifica muito bem, pular de uma para outra, como um consumidor diante de vitrines que tentam seduzi-lo a entrar na loja pelo brilho de suas ofertas. Essa dificuldade de “fidelizar um fiel”, ao gerir a igreja como um modelo de negócio, obriga as neopentecostais a uma disputa de mercado cada vez mais agressiva e também a buscar fatias ainda inexploradas. É preciso que os fiéis estejam dentro das igrejas – e elas estão sempre de portas abertas – para consumir um dos muitos produtos milagrosos ou para serem consumidos por doações em dinheiro ou em espécie. O templo é um shopping da fé, com as vantagens e as desvantagens que isso implica.
É também por essa razão que a Igreja Católica, que em períodos de sua longa história atraiu fiéis com ossos de santos e passes para o céu, vive hoje o dilema de ser ameaçada pela vulgaridade das relações capitalistas numa fé de mercado. Dilema que procura resolver de uma maneira bastante inteligente, ao manter a salvo a tradição que tem lhe garantido poder e influência há dois mil anos, mas ao mesmo tempo estimular sua versão de mercado, encarnada pelos carismáticos. Como uma espécie de vanguarda, que contém o avanço das tropas “inimigas” lá na frente sem comprometer a integridade do exército que se mantém mais atrás, padres pop star como Marcelo Rossi e movimentos como a Canção Nova têm sido estratégicos para reduzir a sangria de fiéis para as neopentecostais. Não fosse esse tipo de abordagem mais agressiva e possivelmente já existiria uma porção ainda maior de evangélicos no país.
Tudo indica que a parábola do taxista se tornará cada vez mais frequente nas ruas do Brasil – em novas e ferozes versões. Afinal, não há nada mais ameaçador para o mercado do que quem está fora do mercado por convicção. E quem está fora do mercado da fé? Os ateus. É possível convencer um católico, um espírita ou um umbandista a mudar de religião. Mas é bem mais difícil – quando não impossível – converter um ateu. Para quem não acredita na existência de Deus, qualquer produto religioso, seja ele material, como um travesseiro que cura doenças, ou subjetivo, como o conforto da vida eterna, não tem qualquer apelo. Seria como vender gelo para um esquimó.
Tenho muitos amigos ateus. E eles me contam que têm evitado se apresentar dessa maneira porque a reação é cada vez mais hostil. Por enquanto, a reação é como a do taxista: “Deus me livre!”. Mas percebem que o cerco se aperta e, a qualquer momento, temem que alguém possa empunhar um punhado de dentes de alho diante deles ou iniciar um exorcismo ali mesmo, no sinal fechado ou na padaria da esquina. Acuados, têm preferido declarar-se “agnósticos”. Com sorte, parte dos crentes pode ficar em dúvida e pensar que é alguma igreja nova.
Já conhecia a “Bola de Neve” (ou “Bola de Neve Church, para os íntimos”, como diz o seu site), mas nunca tinha ouvido falar da “Novidade de Vida”. Busquei o site da igreja na internet. Na página de abertura, me deparei com uma preleção intitulada: “O perigo da tolerância”. O texto fala sobre as famílias, afirma que Deus não é tolerante e incita os fiéis a não tolerar o que não venha de Deus. Tolerar “coisas erradas” é o mesmo que “criar demônios de estimação”. Entre as muitas frases exemplares, uma se destaca: “Hoje em dia, o mal da sociedade tem sido a Tolerância (em negrito e em maiúscula)”. Deus me livre!, um ateu talvez tenha vontade de dizer. Mas nem esse conforto lhe resta.
Ainda que o crescimento evangélico no Brasil venha sendo investigado tanto pela academia como pelo jornalismo, é pouco para a profundidade das mudanças que tem trazido à vida cotidiana do país. As transformações no modo de ser brasileiro talvez sejam maiores do que possa parecer à primeira vista. Talvez estejam alterando o “homem cordial” – não no sentido estrito conferido por Sérgio Buarque de Holanda, mas no sentido atribuído pelo senso comum.
Me arriscaria a dizer que a liberdade de credo – e, portanto, também de não credo – determinada pela Constituição está sendo solapada na prática do dia a dia. Não deixa de ser curioso que, no século XXI, ser ateu volte a ter um conteúdo revolucionário. Mas, depois que Sarah Sheeva, uma das filhas de Pepeu Gomes e Baby do Brasil, passou a pastorear mulheres virgens – ou com vontade de voltar a ser – em busca de príncipes encantados, na “Igreja Celular Internacional”, nada mais me surpreende.
Se Deus existe, que nos livre de sermos obrigados a acreditar nele. 

*********
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras na Revista Época é Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais  de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda(Artes e Ofícios), A Vida Que
Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada. elianebrum@uol.com.br e @brumelianebrum 

4 comentários:

Thyago Cairos disse...

Minha amiga, não vejo dessa forma, apenas acho que é uma questão de educação, vou citar um exemplo: Em anos atrás, entregávamos panfletos, retratando em palavras o amor de DEUS em nossas vidas, queríamos que todos sentissem esse amor maravilhoso e único, pois bem, em um belo sábado de manhã, de sol radiante, reunidos como os adolescentes do PIBL, estávamos destinados a entregar panfletos na extinta feira de rua em Laranjeiras, começava no Shopping Laranjeiras e acabava próximo ao EE Aristóbulo Barbosa Leão, entretanto, ao tentar entregar um panfleto com toda educação para um senhor de estatura media, olhos filtrantes e barba de papai-noel, disse-me: - Se você me entregar essa porcaria de darei um tiro aqui mesmo, pois sou ateu. Fui saindo de fino, na maior tranquilidade que DEUS me deu, agora te pergunto: isso afetou a minha fé? Mudou o meu jeito de pensar ou agir? Sim, hoje estou mais fortalecido, e tenho cada vez mais certeza que as pessoas deste mundo carecem cada vez mais do amor de CRISTO. Concluindo, essa estória do taxista, nada mais é que uma formação pessoal do caráter, da educação ou da falta dela, da sabedoria de conquistar almas, de viver com CRISTO, de andar com Ele e não apenas de ouvir falar, ser praticante da palavra e não apenas ouvintes, para que não se enganem com falsos discursos (tiago 1:22), é muito difícil formar um ser humano, todos nascem, em sua totalidade perfeito, e com o tempo, através de escolhas, amizades, ciclo sociais, projetos particulares, etc..., elas se perdem e deixam de lado a essência da vida, que é DEUS Único e Salvador. Quero ressaltar que isso infelizmente sempre irá existir, não se espante, apenas permaneça em constante oração, e tente impactar o máximo de vidas, viva sempre na presença de DEUS.
DEUS te abençoe em todo respirar.
Forte abraço a todos da casa...
OS: a gente poderia marcar alguma coisa, tipo um happy hour, para trocar ideias, isso é muito bom né, espero o convite heim ;)

Mikaella disse...

Ei, Thyago. Esse texto eu tirei da Revista Época. Achei interessante a forma que a jornalista colocou sua posição e sua não fé. Mas o que me chamou a atenção é a forma que as pessoas veem os cristãos, como pessoas soberbas e arrogantes. Eu conheço também muitos ateus, respeito o posicionamento deles, mas no meu íntimo peço a Deus para dar oportunidades para que essa pessoa mude o seu coração. Para mim, não adianta "forçar" uma pessoa a acreditar em algo, pois fé é muito pessoal. Cabe a mim, orar por essa pessoa, para que se possível (acredito que é), Deus consiga se manifestar. Mas é aquilo também: se a pessoa não quer acreditar, ela não vai acreditar. Rs.

Aqui, leia os outros textos. Este aqui coloquei mais por achar interessante. Mas o de baixo, é meu. E os outros falam um pouco sobre o que penso.

E aqui, vou combinar de vocês irem lá em casa. Este final de semana talvez eu trabalhe de manhã, mas vou falar com o Weber e te ligo. Depois me passa seu tel novamente.

Grande abraço!

Wagner Kirmse Caldas disse...

Minha cunhadinha virando blogueira, que legal =D

É aquele negócio, né cunhada, falta de educação, intolerância, soberba vão ser encontrados em todos os lados, seja no lado teísta, seja no lado teísta. Como humanos, temos nossas características. Mas, gostei do texto da jornalista e não vi um "ataque" ao teísmo, vi uma preocupação com o incentivo à intolerância que é aparente na liderança da teologia da prosperidade, os quais só tem o interesse na monetarização da fé, como você bem apontou nesse post: http://minhavidaemcristosemheresias.blogspot.com/2011/11/por-que-os-profetas-da-prosperidade.html

Ah! Também coloquei essa notícia da Época, no meu blog, uma semana atrás.

Abraço

Mikaella disse...

Gostou, cunhado, do blog? rs. Então, concordo com você que existe intolerância dos dois lados. Mas no meio evangélico a coisa tá feia mesmo. Nem eu aguento! Olha que sou cristã desde pequena. Mas por ser cristã eu também já sofri muito preconceito e ainda sofro. Escuto muita piadinha, enfrento julgamentos. Parece porque sou cristã tenho que ser perfeita, sem erros. Quem dera se eu conseguisse ser perfeita.

Acho que as pessoas estão cada vez mais intolerantes com as diferenças. E isso é inaceitável no meio cristão. Posso não concorda com você, mas preciso respeitar o que você é e como você pensa. Afinal, criticar ou armar barraco como muitos evangélicos têm feito não é uma atitude semelhante a de Jesus, né?!

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